quinta-feira, 29 de maio de 2008

PESQUISA DE CELULA TRONCO no STF

O Debate Errado no STF
O tema que o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrenta não é científico nem religioso. É filosófico. Os juízes do STF terão de decidir se continuamos ou não pesquisas com células-troncos embrionárias, e não farão isso por meio da ciência ou da teologia. A ciência descobre e inventa, mas quando normatiza, já está no campo da ética, portanto, da filosofia. A religião dita regras que estão alinhadas aos seus dogmas e, se quer discutir algo, tem de ir para a teologia; mas, no caso, a teologia lhe dá pouco e ela também termina por recorrer à filosofia.
Então, sem pudores, vamos assumir isso. Neste debate, a decisão será por conta da filosofia. Eis o que está em jogo.
Do ponto de vista filosófico, temos de lembrar que a vida e a morte eram simétricas até muito pouco tempo. A inexistência de algo chamado “batidas do coração” – seja lá o que fosse isso – era o que decretava que ainda não havia vida ou que a vida já havia se extinguido. Se a ciência fosse a dona da verdade, isso não mudaria. Pois, afinal, eram os médicos que decidiam assim. Mas mudaram. Pois o conceito de surgimento da vida perdeu a simetria com o conceito de morte. Médicos ainda avaliam muito pelas “batidas do coração”, nas imagens e sons de aparelhos, o que chamam de surgimento da vida, ainda que já possam avaliar até de modo mais analítico a fecundação. Mas eles não avaliam a morte, hoje em dia, pelas “batidas do coração”, e sim pela “inexistência de funções cerebrais”.
Todos nós, filósofos, sabemos que não foram somente conceitos científicos que determinaram essa perda de simetria entre morte e vida, e sim a valorização, tipicamente moderna, da mente humana ligada ao cérebro – uma avaliação exclusivamente filosófica. Caso tivéssemos dado importância para os intestinos, então eles seriam o ponto de observação para a decisão sobre vida e não-vida. E caso tivéssemos, por razões filosóficas, levado nossa medicina a privilegiar os pés ou uma anatomia indireta, talvez colocássemos a entrada na vida e a saída da vida em situações ainda mais díspares.
Os religiosos ou, melhor dizendo, a Igreja Católica, poderia usar desse meu argumento acima para defender suas posições contrárias à continuidade das pesquisas com células-tronco. Pois meu argumento pode não ser decisivo, mas mostra que a ciência não pode assumir posições definitivas, pois ela mesma não as segue durante muito tempo. Além disso, meu argumento mostra, também, que nem sempre (ou quase nunca) a ciência decide por si, como alguns cientistas imaginam fazer. Mas a Igreja não vai usar desses meus argumentos. Ela tem outros e, de certo ponto de vista, são melhores e mais coerentes com sua função.
O que a Igreja faz é a defesa dos que não podem se defender. A idéia da Igreja é, na verdade, correta quanto aos ensinamentos de Jesus. Caso exista algum inocente que pode se defender, por mais fraco que seja ele já é mais forte do que aquele inocente que não pode de modo algum fazer sua própria defesa. Então, na linha da defesa dos mais fracos, a Igreja tem de cerrar fileiras em torno do embrião. E, nessa hora, não adianta os cientistas dizerem que a vida começa aqui e ali, pois tal debate não é o da ciência. Ela não tem como determinar isso e ela própria muda demais suas posições. O debate é necessariamente filosófico, metafísico. Assim, a Igreja ganha com facilidade a discussão. Pois “vida” tem tudo a ver com o debate metafísico.
Agora, a Igreja pode ganhar a discussão. Aliás, já ganhou. Seus argumentos, do ponto de vista lógico, são mil vezes melhores que os dos médicos. Mas isso não significa que irá ganhar no voto. Pois o voto do STF será feito por meio de duas outras variantes. Primeiro: quanto de positivismo dos séculos XIX e XX não haverá na consciência de cada um dos juízes? Não deve ser pouco. E se assim for, a idéia de que o “avanço da ciência” é mais sagrado que a Igreja sagrada pesará contra os religiosos. Segundo: há a pressão popular – quem gostaria de deixar pessoas com doenças amargas na dificuldade que estão? Afinal, após a votação os juízes terão de voltar às ruas. Os juízes não encontrarão fetos, encontrarão as pessoas em cadeiras de roda ou com outros problemas. Será que poderão encará-las? Além disso, cada um deles poderá se imaginar na situação dos doentes, mas com muita dificuldade se colocarão na pele do embrião.
Então, qual é a posição correta, que o filósofo pode indicar? Ora, quando a filosofia não consegue responder uma questão, não raro ela termina por antes mudar a questão que ficar chovendo no molhado. E, de fato, a questão sobre vida e não-vida não é a melhor questão para o STF. Caso tivéssemos uma cultura filosófica mais espraiada no Brasil, o debate não teria ido para o STF nos termos que foi (veja aí a importância da filosofia nas escolas!). Deveríamos ponderar não o elemento imponderável, que é a entrada ou a saída da vida. O debate, como ele está posto, terá uma resposta arbitrária e pouco legítima, seja ela qual for.
O melhor debate seria tirar a questão metafísica da “vida” e colocar a questão pragmática do sofrimento dos humanos. Isso sim é bem aferível. Igreja, partidos, governos e povo têm caminhado em consenso quanto ao sofrimento dos humanos – quanto menos sofrimento físico e psíquico, melhor. Temos mensurado nosso grau de civilização por essa tendência em buscar o abrandamento do sofrimento físico e psíquico mensurável. Fazemos isso por métodos empíricos legítimos que, então, podem até contar com a ajuda da ciência. Foi por essa via que os Estados Unidos eliminaram o uso da cadeira elétrica para execuções e é por essa via que a Igreja defende os “direitos humanos” de presos – inclusive os que cometeram falta grave. É por essa via que o debate deveria ter entrado no STF.
O julgamento vai ser filosófico. Mas, por falta de cultura filosófica democratizada, não será um bom julgamento. Entramos com a questão errada.

Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, site
http://www.ghiraldelli.pro.br/

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